Farpas de Gelo



~ quinta-feira, outubro 17, 2002
 
Capítulo XX


Arthur e Alea seguiam devagar, cada um segurando Gilbran por um braço. Ele não conseguia ajudar muito. Desceram cautelosamente as escadas, sempre espiando pelas esquinas. O caminho estava limpo. Os barulhos ao longe indicavam que uma verdadeira guerra estava ocorrendo, e provavelmente todos os oficiais haviam rumado pra lá. Saindo pela porta da frente do prédio, Alea indicou o caminho da esquerda.

- Por aqui. São só sete quarteirões até a gente sair da área deles.

A perspectiva de carregar aquele peso por sete quarteirões, arriscando-se a levar um tiro a cada esquina, fez Arthur esmaecer. Sentiu vontade de parar e largar Gilbran no chão ali mesmo. Pro inferno com aquilo tudo. Por um momento, desejou muito que sua memória voltasse e ele se descobrisse um ex-oficial da polícia. Tudo seria mais fácil. Então, Alea esticou o pescoço para olhar da beira de um prédio. E quando voltou-se novamente, seus olhos estavam brilhado:

- Nem acredito! Nos deixaram de presente!

Arthur, confuso, olhou também. E viu, numa pequena praça logo adiante, um carro preto e prateado, com o logotipo da polícia, vazio.

- Vem logo! - disse Alea, apertando o passo o máximo possível, indo em direção ao carro. Arthur ainda olhou para todos os lados, certificando-se que realmente não havia ninguém ali perto, mesmo sabendo que tomava a precaução tarde demais. Mas realmente não havia nenhum policial à vista. Aproximando-se do veículo, Alea largou Gilbran todo em cima de Arthur e disse:

- Atira ele aí no banco de trás enquanto eu tento fazer ligação direta.

Arthur, com um resmungo, desajeitadamente abriu a porta de trás do carro, e arrastou Gilbran para a entrada. Atirou ele de qualquer jeito em cima do banco, empurrando suas pernas para que entrasse totalmetne. Gilbran se mexeu e tentou ajudar, mas sem muito sucesso. Arthur fez um esforço maior e conseguiu empurrar o corpo de Gilbran todo para dentro do carro. Terminando, suspirou, relaxando o corpo, e ergueu-se para fechar a porta, quando ouviu um clique logo ao lado de seu ouvido esquerdo. Antes mesmo de virar o rosto, notou com o canto do olho.

Um policial, parado a seu lado. Com a arma a dois centímetros de sua cabeça.

O que ocorreu a seguir foi como se ocupasse menos de um milissegundo no tempo. O corpo de Arthur foi percorrido por uma onda de calor e outra de frio, subsequentes. Sentiu todos os seus músculos se retesarem, e sua visão escureceu. Sentiu uma explosão de ódio em seu interior, que foi se alastrando pelo corpo todo. Até chegar a seus braços. E, movido por esse ódio, Arthur jogou o braço direito de encontro à arma, todo o resto do mundo se movendo em câmera lenta... exceto por ele. Seu braço acertou a mão do policial, e a força demasiada fez com que, não só ele apertasse o gatilho enquanto a arma subia com o impacto - fazendo uma rajada de três balas se perderem no espaço, a primeira passando preocupantemente perto da cabeça de Arthur, ma sem atingí-la - mas também com que largasse a arma, que voou livre por uma trajetória em arco até cair no chão, vários metros adiante. Antes que o policial pudesse reagir, as duas mãos de Arthur já haviam voado em seu pescoço, pressionando-o com toda a força possível. O policial soltou um gemido esganado, e tentou retirar as mãos de Arthur de seu pescoço com as suas, mas não conseguiu movê-las meio centímetro que fosse. De repente, Arthur fez com as mãos um brusco movimento para o lado, e o pescoço do policial estalou alto. Para finalizar, Arthur ainda levantou o pé direito e chutou o estômago do policial, largando seu pescoço. O guarda voou quase dois metros antes de cair no chão, imóvel.

Arthur ficou parado, olhando para o policial, respirando pesado. Lentamente sua respiração foi se acalmando, e ele olhou para suas mãos, depois novamente para o corpo a sua frente... ele tinha feito aquilo sozinho?! Virou-se, num misto de espanto e excitação, para mostrar para Alea. Então novamente um soco invisível atingiu seu estômago. Alea estava parada, de costas para ele, desarmada. Logo a sua frente, a menos de três metros de distância, um policial apontava a arma para seu rosto. O olhar do policial era um misto de confusão, ódio e medo. Devia ter visto o que Arthur fez. O policial olhou para Arthur, depois para Alea novamente. Arthur gelou. Sabia que não conseguiria alcançar a arma do policial que derrubara sem que o outro atirasse.

Arthur não sabia o que fazer.

E foi então que a voz de Alea soou. E apesar de não conseguir ver seu rosto, Arthur pode imaginar precisamente o olhar dela:

- Cê sabe que se você virar a arma pro lado um segundo, cê morreu, não sabe, amor? Só que meu neném ali atrás vai pegar a arma do seu ex-colega, e vai meter uma bala na tua cabeça. E ele atira muito bem, o meu neném. - Arthur começou a ir na direção da arma, mas sem tirar os olhos da cena. Sua expressão era de ódio e tensão. O policial olhou em sua direção, mas não ousou apontar a arma. Olhou novamente para Alea, e para ele, e novamente para Alea. Estava ficando intimidado. Alea continuou:

- Cê vai se ferrar de qualquer jeito. Mas você pode, quem sabe, me acertar um tiro antes que ele chegue até a arma. Mas você só tem uma chance. E mesmo de tão perto, você pode errar. Ou você pode sair correndo e SE meu neném errar você, você vive. Difícil, né amor? Mas é a vida. Que que vai ser?

O policial ficava cada vez mais tenso, e Arthur chegava cada vez mais perto da arma. O guarda ensaiou intenção de apontar a arma para Arthur, mas imediatamente Alea respondeu com um início de movimento em sua direção, e ele voltou a apontar a arma pra ela. Arthur estava a poucos centímetros da arma agora. O policial ainda olhou para ele, e para Alea novamente. Então Arthur se abaixou e apanhou a arma.

E o policial atirou em Alea.

Arthur gritou, mas não ouviu a própria voz. Não ouviu nada. O estrondo do tiro pareceu durar para sempre. Ele puxou a arma do chão enquanto o policial apontava a sua para ele. Ambos completaram o movimento ao mesmo tempo. Mas apenas um tiro se ouviu.


Fim do Capítulo XX

~ quinta-feira, setembro 12, 2002
 
Capitulo XIX


- Me ajuda aqui! - Alea pediu, enquanto tentava levantar o homem desmaiado. Um tanto relutante, Arthur pegou o outro braço do rapaz para passá-lo por cima do ombro. Encostar nele causou em Arthur uma certa repulsa, embora ele não soubesse dizer exatamente o porquê. Recusava-se a pensar muito no assunto. Não era hora. Precisavam, antes de tudo, sair dali.

Alea e Arthur ergueram Gilbran. Alea olhou em frente, em volta, e suspirou. Um princípio de pavor começou a tomar conta de Arthur. Ela tinha entrado ali com tanta certeza de si, não podia ser verdade que ela não tivesse um plano de fuga! Como que lendo os pensamentos dele, Alea comentou:

- E agora, como é que a gente sai daqui?

Arthur sentiu o sangue congelar nas veias. Era isso! Estavam ferrados. No final do corredor - o que restou dele - já ouviam os passos de vários policiais subindo as escadas. Um impulso de largar Gilbran e correr percorreu os músculos de Arthur, mas ele não o fez. Pensou em Alea. Não iria deixá-la sozinha. Ela precisava de...

Nesse exato momento, Alea largou Gilbran e correu. Assustado, Arthur aparou a queda do estranho desmaiado. E viu quando Alea dirigiu-se à janela atrás deles e a escancarou. "Meu deus, ela não vai sobreviver à queda!" - Arhur pensou, e estendeu o braço para tentar impedí-la, mas para sua surpresa, Alea deu meia volta, dirigiu-se aos armários, e foi fechando, uma a uma, as portas que abrira. Apenas a porta do armário onde encontraram Gilbran e as últimas três da outra ponta foram deixadas abertas. Então, ela entrou em um dos armários da ponta, olhou para Arthur, e ele imediatamente entendeu. Arthur atirou Gilbran de qualquer jeito dentro de outro armário, fechou a porta, e se trancou no último. O lugar era extremamente apertado e escuro. Arthur desejou muito não descobrir nenhuma claustrofobia apagada pela amnésia naquele momento. Em poucos instantes, os passos encheram o lado de fora. Eram muitos. Arthur prendeu a respiração. Com sorte, eles seriam imbecis o suficiente para não procurar dentro dos armários. Através da porta, ele ouviu a voz do garoto que tinham deixado pra trás. O maldito garoto! Havia esquecido dele:

- Aqui é o Cadete Ferrison! Não atire, senhor!

- Reporte, soldado!

- Dois invasores, senhor. Um homem e uma mulher. Estavam armados, e me renderam! Queriam o prisioneiro do fim do corredor!

- Quais as suas condições, garoto?

- Eu estou... eu... peço permissão para me recompor, senhor.

- Ok, saia daqui logo. Você já foi ineficiente o bastante.

- Sim, senhor. - respondeu o garoto, com voz baixa de vergonha. Os passos se aproximaram do fim do corredor, e agora estavam na mesma sala dos armários.

- Senhor, o prisioneiro foi levado!

- Filhos da...

- Senhor, veja. A janela está aberta. Eles devem ter pulado!

- Confirma visual dos corpos?

- Negativo!

- Senhor, as chances de sobrevivencia de uma queda dessa altura são remotas.

- Eles não pularam. Vasculhem cada saleta!

Arthur sentiu novamente a adrenalina varrer seu corpo. Eles não tinham caído. Agora era questão de tempo até que os encontrassem.

Os passos do lado de fora eram confusos. Ora se afastavam, ora se aproximavam. Alguns passavam bem perto. E de repente, todos pararam. O silêncio parecia irreal. Arthur sabia que eles ainda estavam ali. Mas por que estavam parados? Teriam ouvido algo? Uma gota de suor gelado desceu por sua nuca. E repentinamente, ele ouviu um barulho alto. A porta de um dos armários havia sido aberta!

Logo em seguida outra porta foi escancarada, e outra. Arhur percebeu que eles estavam abrindo todas as portas, desde a ponta. Embora se sentisse aliviado por não terem começado pela sua ponta, ele sabia que encontrariam Alea. Pelas suas contas, faltavam duas portas. Uma foi aberta. Outra. Arthur se preparou para saltar de seu esconderijo e pular em cima do primeiro policial que encontrasse.

Então, ao longe, houve uma grande explosão. E o prédio tremeu.

- Merda! O que foi... - a voz do policial foi cortada por outra explosão. Então a voz do comandante do batalhão soou:

- Reagrupar! Estamos sob ataque! Rápido, para o primeiro andar! - E os passos se afastaram na direção da escada. Arthur ainda ficou parado por alguns instantes. Uma terceira explosão fez o prédio tremer ainda mais, e a porta da cabine onde ele estava foi repentinamente escancarada. Era Alea.

- O que foi isso? - Perguntou Arthur, ainda atordoado pela tensão.

- Meu pai. Ele vai me matar! - Respondeu Alea, com ar de criança que prevê um castigo terrível. Ela abriu o armário onde Gilbran estava, e o segurou. Então, ele gemeu. O rosto dela se iluminou num sorriso, e ela perguntou:

- Gil? Gil, tá me ouvindo?

A resposta foi outro gemido, não muito mais alto do que o primeiro. Alea continuou:

- Gil, sou eu, Alea. Eu vim te buscar, tá me ouvindo? Preciso que você me ajude! Consegue andar?

Gilbran tentou abrir os olhos, mas pareceu ficar tonto.

- Ele está dopado. Inferno! Vamos ter que carregá-lo mesmo, vem. Vem, Arthur! Anda!! - Alea estava extremamente ansiosa. Com a ajuda de Arthur, ela ergueu Gilbran novamente, olhou para o corredor e disse:

- Ok, reze pra gente não encontrar nenhum tira perdido no caminho.

E assim, os três começaram a rumar para a saída o mais rápido que podiam.


Fim do Capítulo XIX
~ sexta-feira, julho 05, 2002
 
Capitulo XVIII


Alea subia a escada com passos felinos. Rápidos, decididos e silenciosos. Arthur fazia o que podia para acompanhá-la sem aletar a todos num raio de quilômetros de sua presença. Ele se sentia lerdo, pesado e barulhento. Podia sentir as batidas de seu coração fazendo tremer o peito e os braços. Nunca estivera tão nervoso em toda a sua vida. Ou talvez tivesse estado, afinal ele não lembrava de nada. E estava com um sincero medo de que não fosse durar o suficiente para descobrir.

Ambos chegaram ao andar superior do que agora parecia ser um ginásio. O andar era amplo e não tinha paredes, apenas algumas divisórias de madeira que formavam salas e corredores ao longo do andar. "Tapa a visão dos atiradores mas não pára as balas", pensou Arthur, outra vez sentindo-se em campo aberto e totalmente exposto. Dessa vez, porém, percebeu um outro sentimento, trazido à tona pelo primeiro. Uma certa excitação, uma tendência a organizar as idéias de uma forma tática e hierárquica. Percebeu que estava vasculhando metódicamente o local com o olhar e definindo possíveis pontos protegidos, melhor forma de aproximação... ele criara toda uma estratégia militar na cabeça. Arthur diminuiu o passo e parou de prestar atenção em Alea, tentando analisar ao máximo essa ação instintiva, como quem acha no fundo do armário uma das peças que faltam em um quebra-cabeças há dias incompleto.

Foi arrancado de seu devaneio por um grito, seguido de tiros. Antes mesmo de conseguir pensar alguma coisa, já estava com o fuzil empunhado, destravado e mirado na direção do ruído. Só então percebeu Alea, ainda terminando um passo brusco para trás, o cano da arma dela fumegando, e o corpo de um policial que havia emergido do corredor de surpresa caído diante dela, ainda gemendo, uma poça de sangue aumentando abaixo de si. Alea se recuperou rapidamente do susto, e virou-se para Arthur, gritando:

- Se esconde em algum canto! Agora ele sab... - não conseguiu terminar a frase. Imediatamente a porta de uma das divisórias, mais para o fundo do corredor, estourou com um chute violento. Logo depois metade do corpo de outro policial se inclinou para fora da porta, com uma metralhadora nas mãos, e agitando-a de um lado para o outro, ele começou a atirar. Alea pulou para o chão, e Arthur se escondeu atrás de uma pilastra de concreto cuja localização ele havia instintivamente recordado.

As balas zuniam, destroçavam madeira e ricocheteavam em todos os cantos. Enquanto se escondia, Arthur era assolado por um turbilhão de dúvidas. Por que ele reagia tão corretamente àquela situação de conflito? Por que empunhou a arma tão bem, por que não sentira nenhum choque ao ver o corpo do homem recém baleado caindo morto no chão? E a maior angústia: Será que Alessandra havia escapado dos tiros? Ele sentiu o ímpeto de olhar, precisava ter certeza que ela estava bem, mas o soldado no fim do corredor ainda atirava. No exato momento em que ouviu o clique seco da munição do guarda se esgotando, Arthur saiu de trás da pilastra, atirando como louco na direção do policial, que pulou para dentro da sala onde estava para escapar. Quando percebeu que o atirador havia se escondido, Arthur correu para onde Alea jazia. Cada passo parecia levar anos para acontecer.

Mas bastou chegar perto para que Arthur percebesse que ela estava ilesa. Nem um arranhão. Havia caído de mal jeito, e estava gemendo de dor. Mas era só isso. Arthur ajudou Alea a se levantar, sem dizer palavra, e a fez passar o braço por cima de seu ombro. Ela não conseguia colocar a perna direita no chão, e ele fez menção de carregá-la para trás da pilastra, quando o policial reapareceu na porta. Arthur gelou. O policial, ao vê-lo completamente indefeso, hesitou por um segundo. Arthur pode vê-lo sorrindo por trás do capacete.

Três tiros soaram altos como trovões. Arthur sentiu o corpo todo formigar na expectativa do impacto com as balas, e logo após uma onda de frio percorreu seu corpo de cima a baixo. Não sentira impacto algum. Só então viu o corpo do policial cair, cravejado por três balas certeiras da pistola de Alea, que aproveitara o momento de hesitação do oponente. A expressão no rosto dela era assustadora. Os olhos pareciam borbulhar incandescentes. Ela tirou o braço do ombro de Arthur e seguiu em frente sozinha, mancando.

- Alea... - Arthur chamou, querendo pedir para que ela não fosse, mas o chamado foi ignorado com tamanha veemência que ele nem completou a frase. Ajeitando a alça do fuzil sobre o ombro, ele correu até emparelhar com ela. Alea andava segurando a pistola à frente do peito, e apontando-a para todas as direções em que olhava. Entrando em uma das saletas, encontrou mais um policial, que, ao vê-la, imediatamente largou a arma e colocou as mãos sobre a cabeça.

- Não me mata! Não me mata, por favor! - implorava o policial. Pela voz e pelo pouco de rosto que o capacete deixava enxergar, Arthur pode dizer que era um garoto, de 22 anos no máximo. Provavelmente novo no serviço. Alea, rugindo, o inquiriu:

- Cadê o prisineiro? Hein? - O garoto se ajoelhou e continuou a implorar pela vida. Alea avançou para cima dele e o acertou em cheio no rosto com a coronha da pistola. O garoto cuspiu sangue, e parou de falar, limitando-se a respirar ofegante e pesadamente.

- Fala, seu merda! Cadê o cara? - Alea parecia prestes a atirar no policial, a despeito de sua rendição. O garoto, com voz quase chorosa, falou:

- Ele tá no fim do corredor. No armário de metal. A chave tá ali na mesa, só por favor não me mata!

Alea olhou para a mesa, e viu um pequeno molho de chaves. Alcançou-o com uma mão, mantendo a outra a apontar a pistola para o menino. Antes de sair da sala, ainda disse:

- Se ele estiver com um arranhão, um hematoma por menor que seja, eu volto aqui e espanco você até a morte! Entendeu? - Alea estava falando seríssimo. Até mesmo Arthur teve medo dela naquele momento. O policial apenas meneava a cabeça em sinal afirmativo, e chorava silenciosamente. Alea saiu da sala tão decididamente quanto entrou, e Arthur, indeciso entre seguí-la ou ficar ali com o garoto, virou-se para ele e falou:

- Não saia daqui em hipótese alguma, se você tem amor à vida.

O garoto pareceu assimilar essa informação tão bem quanto as anteriores. Arthur, convencido de que o jovem policial não tentaria nada de estúpido, seguiu o corredor na direção que Alea havia tomado.

Chegando ao final da passagem, Arthur viu uma fileira de armários de metal. Alea nervosamente procurava a chave que destrancava a porta do último, entre as várias chaves do molho que pegara na sala. As portas de todos os outros armários aparentemente não estavam trancadas, e ela já havia escancarado todas.

Arthur se aproximou e estendeu a mão para pegar o molho das mãos de Alea:

- Aqui, deixa eu ajudar...

Mas ela respondeu com uma cotovelada que o pegou de raspão, mas que o deixou estupefato. Ele se afastou, confuso com a reação violenta dela. A cotovelada não tinha lhe acertado nem de longe, mas ele sentia a dor de um golpe perfeito. Ela o havia agredido! Revoltado, Arthur chegou a pensar em ir embora e deixá-la ali sozinha, se era essa a gratidão que ela demonstrava por ele tê-la acompanhado num ataque suicida e idiota. Mas logo respirou fundo e repensou. Percebeu que não podia culpá-la, ela estava fora de si. Deixaria para conversar isso com ela mais tarde e...

Nesse momento, a chave virou, e com um estalido metálico, a porta se abriu de súbito, parte devido à força do puxão de Alea, parte devido ao peso do corpo que estava encostado nela por dentro. O homem caiu no chão ruidosamente entre Alea e Arthur. Ele parecia ter mais ou menos 30 anos, branco, cabelo em corte militar. Usava uma calça com vários bolsos e uma camisa regata, e Arthur notou que ele tinha um porte físico desenvolvido. Estava desacordado, mas não parecia morto. Também não parecia machucado, mas havia claros sinais de ter sido despojado de várias coisas que trazia consigo antes de ser amarrado e preso ali. Os bolsos da calça estavam quase todos rasgados e algo parecia ter sido arrancado de seu cinto.

Imediatamente, Alea debruçou-se sobre o homem e colocou dois dedos em seu pescoço, segurando o pulso com a outra mão. Ficou de olhos fechados por um longo segundo, depois deu um sonoro suspiro de alívio. Abriu novamente os olhos, olhando para o rapaz a seus pés. Arthur viu nos olhos de Alea o mesmo brilho que vira mais cedo no carro. E teve certeza.

Aquele era o tal Gilbran.


Fim do Capitulo XVIII
~ quinta-feira, julho 04, 2002
 
Capítulo XVII


Arthur perdeu a conta do sem-número de pequenos becos e vielas pelos quais Alea se meteu, sempre o puxando pelo braço. A grande maioria desses becos ele nem havia tomado conhecimento antes de Alea mudar repentinamente de direção e arrastá-lo junto. Havia cinco minutos que eles corriam incessantemente, e por várias vezes ouviram as vozes dos seguranças logo adiante, horas em que Alea sempre arrumara uma outra viela providencial para se enfiar e evitar a detecção. Arthur esperava que após tanto tempo sem serem encontrados, eles fossem diminuir o passo, mas os seguranças não davam sinal de cansaço, e muito menos Alea. Estava no meio desse pensamento, quando ela de súbito parou.

Estavam próximos ao fim de mais um beco, e alea encostou-se na parede, puxando Arthur pelo braço para encostar-se também. Ela observou logo além da esquina, e voltou-se para ele:

- Ok, a gente tem que chegar naquele prédio ali.

Arthur inclinou-se para olhar. Percebeu então que eles estavam do outro lado do lugar onde o jipe explodira. A parede logo à frente do fim da viela onde estavam era a parede lateral do prédio onde Alea queria entrar. O único problema é que haviam pelo menos cinco seguranças ali, observando os estragos causados pelo veículo, e veriam muito facilmente caso eles tentassem entrar no prédio. Arthur voltou a encostar-se na parede da viela.

- Bem, é impossível. Melhor corrermos daqui para algum lugar seguro.

Alea olhou para ele com desaprovação:

- Impossível? É assim que você pretende nos ajudar? É claro que é possível, olhe de novo.

Alea puxou a gola de Arthur para que ele olhasse novamente, dessa vez apontando para uma janela aberta na parede logo adiante, a uns 2 metros e meio do chão.

- Tá doida? Como é que a gente vai alcançar aquilo? - perguntou Arthur, controlando-se para falar o mais baixo possível. Adiante, os seguranças, de costas, não notavam sua presença por pouco. Alea respondeu:

- Você me sobe e eu te puxo, ué!

Arthur não tinha nem terminado de pensar num protesto contra a idéia maluca de Alea quando ela disparou novamente, puxando-o pelo braço. Ambos pararam logo abaixo da janela, e ela olhou para ele e acenou com a cabeça para cima, indicando a ele que a subisse. O coração de Arthur disparou. Se algum dos seguranças se virasse para trás agora, teria um alvo fácil. Arthur sentiu-se uma criança vulnerável, querendo correr para o esconderijo mais próximo. Alea fez uma careta impaciente, e repetiu o gesto. Ainda meio trêmulo, com a adrenalina a mil. Arthur juntou as mãos diante do abdomen para que Alea apoiasse o pé. Mal ela pisou, ele a impulsionou para cima com toda a força. Inesperadamente, foi forte demais, e Alea praticamente voou janela adentro, caindo com um estrondo. Arthur gelou, tendo a nítida impressão que os policiais ouviriam, e ficou estático. Mas nenhum deles se virou. Foi quando ele sentiu um tapa em sua cabeça. Olhou para cima, e viu Alea. Rindo, a louca.

- Ei, seu escroto, não precisa me jogar longe assim! Agora vem, dá a mão.

Ainda atônito, ele deu as mãos para que Alea o puxasse. Ela franziu os olhos e com um gemido longo e contínuo começou a içá-lo. Então, Arthur no meio da subida ouviu um grito "Ei, olha ali!", e soube na mesma hora que o gemido de Alea havia chamado a atenção dos tiras. Então, deixando o instinto de sobrevivência lhe dominar, deu um impulso na parede que quase jogou Alea para fora outra vez, mas o levou até o batente. Alea imediatamente puxou suas pernas para dentro, milésimos de segundo antes das balas passarem zunindo. Mal Arthur caiu no chão, ela o puxou pelo braço, forçando-o a ficar de pé, e saiu correndo em direção à porta da kitchinete onde tinham aterrisado. Alea girou a maçaneta e puxou a porta, que estava destrancada. logo à direita, uma escada descia até a porta de entrada do prédio, e à frente havia outra porta.

- Vem! - gritou Alea, sempre puxando Arthur atrás de si, disparando em direção à outra porta. No meio do caminho, Arthur viu a sombra dos seguranças chegando na porta do prédio. Ele fechou os olhos e desejou como nunca que a porta adiante estivesse destrancada também. Mas Alea já tinha aberto ela, e corria como louca na direção de outra janela. De repente, ela largou o braço dele e gritou:

- Pula!

E se atirou no ar lá fora. Arthur hesitou por um momento, mas ouvindo os passos dos guardas na escada do corredor, respirou fundo e pulou também, fechando os olhos.

Aterrisou em cima de algo. Logo notou que era alguém. O peso de seu corpo derrubou a pessoa no chão com um gemido, que para alívio parcial de Arthur, não era de mulher. Ele rolou de cima do corpo para o chão e abriu os olhos, virando-se para olhar. Tinha caído em cima de um policial! À frente do corpo estatelado do tira, Alea, de joelhos, levantava-se. Arthur entendeu que tinha acabado de salvar a vida dela, que deveria ter aterrisado bem diante do guarda armado. O sorriso radiante dela ao correr em sua direção confirmava a teoria. Arthur preparou seu braço para o tranco de ser novamente puxado, mas ao invés disso, Alea o abraçou. Ele ficou estupefato. Ela ria como uma criança elétrica, um risinho agudo e maroto. Afastou-se dele, olhou em seus olhos confusos e lascou-lhe um rápido beijo nos lábios.
- Valeu neném! - disse ela, com um sorriso do tamanho do mundo. Arthur sentiu uma onda de formigamento percorrer o corpo, partindo de sua boca, como se o beijo dela tivesse emanado uma poderosa descarga elétrica. Ele não sabia o que fazer, tinha esquecido até mesmo como andar. Mas o êxtase durou pouco, logo a cabeça de outro guarda despontou na janela da qual haviam acabado de pular, e Alea, notando, correu num impulso explosivo para dentro de uma construção grande ali do lado, puxando Arthur atrás de si. Ambos entraram e ela fechou a porta, que tinha uma forte tranca por dentro. Enquanto ela trancava, o barulho de tiros ricocheteando no metal da pesada porta lá fora podiam ser ouvidos. Logo foram substituidos por violentas pancadas. Alea deu dois passos para trás, olhando para a porta, depois caiu no chão, primeiro sobre os joelhos, depois sentada, apoiando-se em um braço, quase desfalecida. Arthur correu para socorrê-la.

- Tô bem, neném... tô bem, deixa... - disse ela, deixando o peso do corpo cair nos braços de Arthur. - Pelo menos a gente chegou onde devia.

Ela respirou profundamente, de olhos fechados, e Arthur sentiu um ímpeto de abraçá-la e carregá-la dali para algum lugar longe, longe de tiros, policiais e daquela guerra toda lá fora. Mas ela abriu os olhos e, como que com a força totalmente renovada, pulou sobre os próprios pés novamente. E disse:

- Essa porta foi feita pra manter gente do lado de fora, mas eles podem derrubar ela rápido. E eu não sei quantos ainda estão aqui dentro. Vem comigo, neném. Não acabou ainda.

Então ela pegou o embrulho de pano que carregara até ali, abriu-o no chão, e Arthur pode finalmente ver do que se tratava. Dois fuzis, duas pistolas e um punhado de pentes sobressalentes. Alea atirou um dos fuzis para Arthur, que desajeitadamente o aparou nos braços, temendo que fosse disparar a qualquer momento, e enfiou uma das pistolas no cinto dele.

- Calma, tá travada. - disse ela, e sem tirar os olhos dos dele, pegou o fuzil, tirou a trava, e devolveu - Agora não tá mais. Usa com cuidado.

E enquanto Arthur ainda olhava confuso para a arma em suas mãos, ela pegou as duas restantes, virou-se para uma escada larga que levava ao segundo andar, e disse:

- É agora, Arthur. Se vir algum deles, atire. Pra matar.


Fim do Capítulo XVII
~ domingo, maio 19, 2002
 
Capítulo XVI


O carro jogava para um lado, depois para o outro. Abaixado com a cabeça no colo de Alea, Arthur sentia um leve enjôo. Haviam deixado para trás o guarda armado, mas ela ainda segurava a cabeça dele para baixo. Ele queria levantar, queria olhar para o que estava acontecendo, na tentativa do enjôo diminuir, mas a mera menção de levantar gerou um novo empurrão para baixo.

- Fica aí! - ela berrou. Ele abriu a boca para protestar, mas logo escutou novos tiros. Súbito, alguma coisa no painel estourou. Alea berrou um sonoro palavrão e fez uma curva tão brusca que Arthur teve a certeza de que o carro iria virar. Pôde inclusive sentir as rodas se levantarem levemente do chão, mas logo Alea jogou para o outro lado e o carro caiu novamente com estrondo. Nesse momento, a mão de Alea que segurava a cabeça de Arthur foi requisitada no volante, e ele aproveitou a deixa para sentar-se novamente.

- Deita, porra! Quer morrer?! - berrou Alea com uma fúria dracônica nos olhos, mas olhando para a frente ainda. Arthur encheu o peito e gritou de volta:

- Ah, tá perguntando isso agora?! Agora é meio tarde pra dizer que não, né? Você já praticamente matou a nós dois!

Alea pareceu conter uma explosão na garganta, e disse em um tom de voz anormalmente monotônico:

- Escuta aqui, neném. Se você fizer exatamente o que eu disser, você vive. Caso contrário, foi um prazer conhecer você. Entendeu?

Arthur queria responder, mas se calou. Ficar tirando a concentração da motorista agora não era nada construtivo. Os tiros haviam cessado novamente, mas ele ouvia o barulho de carros os perseguindo. Alea entrava e saia freneticamente de becos e ruelas para evitar uma linha de fogo entre ela e os perseguidores, mas Arthur percebeu que ela ainda seguia em uma certa direção.

- Pra onde a gente tá indo? - ele perguntou, e ela ficou calada. Ele esperou. Nenhuma resposta. Ele resolveu insistir, a voz mais nervosa:

- Pra onde a gente tá indo, Alessandra?!

A resposta veio no olhar dela, que se focou em algo e brilhou estranhamente logo depois que o veículo saiu de uma viela e dobrou em uma rua um pouco mais larga. Arthur se virou para ver. E seus olhos se arregalaram de pavor.

Diante dele, pelo menos dez carros de policiais barravam a entrada de um edifício grande, parecido com uma fábrica. Perto dos carros, um sem-número de fardados corria de um lado para outro, pegando armas e se agrupando sob o comando de alguns aparentemente mais graduados. O barulho estridente dos peneus do jipe fazendo a curva chamou a atenção de todos, e eles se viraram instantaneamente. E por uma fração de segundo, a visão do inesperado os desarmou.

Foi nessa fração de segundo que Alea puxou de baixo do banco uma pedra e prendeu o acelerador. Arthur olhou para ela, e de novo para os policiais. A cena acontecia em câmera lenta, arrastada. Cada um deles destravava sua arma e fazia pontaria na direção do carro. Olhou novamente para Alea, e a viu quase debruçada sobre o banco traseiro, de onde pegou um embrulho de pano mais ou menos do tamanho de uma maleta. Olhou para a frente novamente. As armas todas apontavam na direção deles. Arthur fechou os olhos esperando ser varado por uma saraivada de tiros, e os sons ambientes se distanciaram e diminuiram até ele estar ouvindo apenas as batidas frenéticas de seu próprio coração. E em meio a essas batidas, ele ouviu:

- Pula!

Sentiu Alea passando por cima dele, e a mão dela agarrando seu braço firmemente. Arthur flexionou as pernas de qualquer maneira, e sentiu o corpo solto no ar. Vários segundos flutuando, em silêncio. Então, ele ouviu o zunido de algumas balas passando, algumas perto, outras muito perto. E poucos segundos depois, o chão o atingiu, vindo de algum lugar, e ele rolou, rolou até atingir algo, seu corpo absolutamente dolorido. Sentiu que a cabeça ainda rodava, que queria desmaiar, mas fez um enorme esforço e abriu os olhos. E a primeira coisa que viu, de um ângulo absolutamente estranho, foi o jipe seguindo impetuosamente em frente, apesar dos tiros disparados. Logo os guardas deixavam de atirar e corriam desesperados para o lado, escapando do veículo descontrolado. Então o jipe atingiu o primeiro dos carros. E a explosão foi estrondosa e magnífica.

Arthur relaxou o corpo, sentindo-se todo escoriado, e ia aceitando de bom grado a perda de consciência, quando um pé descalço bloqueou sua visão. Lentamente, ele foi subindo o olhar, e deparou-se com Alea, semi-agachada, diante de si. Ela estava muito pouco arranhada, e seu rosto era grave:

- Vamos! A gente tem pouco tempo! - e estendeu a mão para ele.

Com um longo suspiro, Arthur deu a mão para ela, permitindo-se levantar, e imaginando que espécie de loucura idiota havia tomado conta de Alea.


Fim do Capítulo XVI
~ sábado, maio 04, 2002
 
Capítulo XV


O vento forte no rosto de Arthur o forçava a franzir o cenho e apertar os olhos. Ele se ajeitou no banco pequeno do jipe, buscando aliviar seu desconforto, mas sabia que o incômodo não vinha da posição no assento, e sim da velocidade assustadora que Alea, a seu lado, impunha ao veículo, enquanto berrava em um celular:

- ...Não me interessa! Não! - repetia ela, claramente interrompendo quem quer que estivesse do outro lado - Ah, é?! Pois foi a pior coisa que ele podia ter feito! Ele tinha que ter me contado na mesma hora! Ah, cala essa boca! Foda-se, fo-da-se o que você acha! Ele tinha que ter contado isso ontem! Saber pelo jornal foi muito escroto!

Enquanto esbravejava, ela fazia curvas bruscas por milhares de ruelas apinhadas de pequenos edifícios e casebres. Guiava apenas com uma mão, que eventualmente soltava o volante para ser enterrada com força na buzina, tirando da frente algum pedestre desavisado. A cada curva, Arthur fechava os olhos e suava frio, tendo certeza que ia cair. Mas até agora havia conseguido se manter dentro do carro por milagre. Ao seu lado, Alea gritava cada vez mais:

- Ah, chega! Chega, porra! Não vou mais discutir! Diz pra ele onde eu tô indo. Aah, sabe sim! Sabe muito bem! E se não souber, descobre! - terminou finalmente, atirando enfurecidamente o telefone no banco traseiro do jipe. Por poucos centímetros o aparelho escabou de voar para fora. Alea agora usava ambas as mãos para socar o volante:

- Merda! Merda, merda, merda!!

- Ei, você... - Arthur hesitou, notando que falava muito baixo para ela conseguir escutar. Completou em voz alta - Cê tá bem?

- Não! Não tô! Eu tô péssima! Eu tô muito mais que péssima! - ela respondeu sem olhar para ele. Continuava dirigindo com uma mão só, enquanto mordia as costas do dedo indicador da outra, o cotovelo apoiado na porta. Ele respirou fundo, tomou coragem, e perguntou:

- Ok... o que exatamente aconteceu?

- Eles já começaram! Os filhos da puta já começaram! Aquele grande merda do Seikewikz não perde tempo. Ele só anunciou os planos de expandir as fronteiras da província depois de já ter sitiado uma área grande dos guetos. Ele agiu de surpresa, pegou muita gente desprevenida. Muita gente nossa. Ontem, quando você saiu da sala, eu e meu pai passamos uma hora discutindo se deixaríamos eles para trás para evitar confronto. Mas meu pai não me disse. Não me disse! E de propósito! Ele sabia!

Arthur percebeu que ela parara de falar, mas ainda não tinha entendido. Então arriscou perguntar:

- Sabia do quê?

- Que Gilbran estava lá! - ela disse, e a voz dela tremulou levemente. Arthur sentiu seu estômago dar uma cambalhota de repente, e não entendeu por quê. Quem era Gilbran? E mais importante... por que Alea tinha ficado tão fora de si ao saber que ele estava capturado? E aliás, o que exatamente ela pretendia fazer?

Mal acabara de pensar isso, Arthur olhou para frente e viu que agora estavam em uma rua comprida e reta, e adiante no caminho, havia um veículo preto com um emblema pintado do lado de sete estrelas prateadas, e dois homens com uniformes completos, montando guarda. Um deles notou o jipe vindo em sua direção, e estendeu o braço, mostrando a palma da mão num sinal para o veículo parar. E então, Alea acelerou. E Arthur entendeu o que ela iria fazer. E desejou, com uma intensidade terrível, que estivesse errado.

Embora o visor do capacete estivesse abaixado, Arthur pode ver claramente os olhos do policial se arregalando. Ele jogou a mão para a cintura, em busca da arma, mas era tarde demais. Com um impacto estrondoso, o jipe atingiu a frente do carro de polícia, que girou, acertando em cheio o policial. O colega dele teve tempo de pular para fora do caminho do jipe, e levantou-se do chão sacando a própria arma. Alea olhou para o retrovisor e instintivamente agarrou a cabeça de Arthur, puxando-a para seu colo:

- Abaixa!

e Arthur fechou os olhos e desejou que tudo aquilo fosse um terrível pesadelo, enquanto balas zuniam a alguns centímetros dele, onde segundos antes estivera sua cabeça...


Fim do Capítulo XV
~ quarta-feira, abril 10, 2002
 
Capítulo XIV


De um pulo, Arthur abriu os olhos e ergueu a cabeça. Percebeu que havia apagado, mas não sabia quando nem por quanto tempo. Sua mão ainda estava caída sobre o colchão de Alea, mas ela não estava mais ali. Um pouco angustiado, seus olhos a procuraram até que viram a sombra dela na parca luz que entrava pela janelinha da cozinha. Estava arrumando algumas coisas sobre a mesa. O cheiro de café invadiu os sentidos dele. Café da manhã?

Ele sorriu, mas logo pensou que, se ela já tinha acordado, então provavelmente havia visto que ele segurava sua mão. Seu braço se retraiu instintivamente, e ele olhou para baixo. Fingiu que dormia por alguns segundos, enquanto ensaiava o despertar.

E então se levantou, com a cara exageradamente amassada, e fingiu procurá-la. Da cozinha, Alea notou que ele despertara e, quase cantando, falou, com um farto sorriso:

- Bom dia, neném! Quer esquentar a goela pra ver se anima?

Arthur emitiu um som abafado e indefinido em resposta, e Alea gargalhou. Sentou-se, cantarolando baixo, e começou a comer algo que parecia um bolo amanteigado. Arthur se levantou, apanhou algumas roupas novas que Alea deixara sobre uma cadeira, e foi para o banheiro. Enquanto lavava o rosto, observou-se no minúsculo espelho. Ainda não se acostumara com aquilo, sempre que se olhava no espelho tinha uma sensação esquisita de surrealidade. Ainda mais estranha porque não tinha uma imagem do rosto que ESPERAVA ver. Durante todo o tempo em que se vestia, tentou em vão lembrar de alguma feição, cor de olhos, qualquer coisa. As lembranças evocavam sensações que se dissipavam momentos antes de se tornarem imagens.

Frustrado, voltou à sala do apartamento. Alea estava virando um copo de leite e, ao avistá-lo, baixou o copo, que deixou nela um pitoresco bigode branco. Arthur não conteve uma risada, e ela riu de volta. Depois lambeu o que pôde, limpando o resto com as costas da mão. Arthur olhou então para a comida, e a visão de uma mesa posta, mesmo que com pouca coisa, fez seu estômago roncar alto. Estava morrendo de fome. Mesmo. Aproximou-se para sentar ao lado de Alea, mas viu que não havia outro banco.

- Senta aqui, eu já acabei! - disse ela se levantando, e oferecendo o banquinho de tampo de madeira e pés de ferro enferrujado onde havia se sentado. Arthur sentiu uma pequena decepção por saber que não a teria à mesa como companhia. Mas tratou de ignorar a sensação, pensando consigo mesmo que não era mais adolescente há muito tempo. Ele se sentou e comeu, enquanto Alea enrolava seu colchonete e pegava um jornal do lado de fora da porta.

Arthur saboreou cada pedaço do bolo e tomou o café já morno sem açúcar. Não lembrava da última vez que tinha comido algo saboroso assim. O bolo era realmente fenomenal, embora ele não pudesse dizer ainda do que era feito. Curioso, perguntou para Alea na sala:

- Esse bolo é muito bom! Foi você quem fez?

Não houve resposta. Ele estranhou. E, virando-se, começou a repetir a pergunta:

- Alea, foi você quem... - não terminou. Deparou-se com ela, de pé em frente à porta ainda entreaberta, olhando para o jornal, estática. Apenas seus olhos, arregalados e vítreos, percorriam as linhas escritas com uma fúria que quase queimava o papel. Não havia mais nenhum traço em seu rosto da menina que Arthur vislumbrara durante a manhã. Era uma mulher, com o peso do mundo sobre seus ombros, com a idade de mil vidas no cenho franzido. Arthur pulou do banco e correu até ela, segurando seus ombros. Baixou os olhos para ler o jornal, mas por alguma razão ergueu-os novamente e os pousou sobre os de Alea, preocupado. Os olhos dela estavam úmidos, e ela mexeu a boca tentando falar, mas a princípio nada saiu. Ela balançou a cabeça, fechou os olhos e, dessa vez, disse com voz grave:

- Vem!

E agarrando seus papéis de qualquer jeito com uma mão, e o braço de Arthur com a outra, ela atravessou a porta como um furacão, mal dando tempo dele, assustado, fechá-la atrás de si.


Fim do Capítulo XIV
~ segunda-feira, fevereiro 25, 2002
 
Capítulo XIII

Havia um leve zunido ecoando ao longe.

Estava frio, depois quente, ou talvez estivesse frio e quente ao mesmo tempo. Ele não conseguia sentir direito. Seu corpo flutuava, sem peso, como se brincasse de soltar o ar e afundar numa piscina. Mas havia algo, o cheiro talvez. Ele não sabia. Algo o enauseava, causava ânsia de vomitar, mas ele não conseguia. Era como se seus músculos não o respondessem. Ele tentava se mexer, mas os sinais se perdiam no caminho entre o cérebro e os braços, pernas, pescoço. Era uma sufocante paralisia, e aquele zunido ao longe.

Ele tentou ao menos abrir os olhos, mas não conseguia saber se seus olhos estavam realmente fechados. Havia uma imagem abstrata, escura e pouco nítida na sua frente. A imagem mudava repentinamente, como uma troca de slides projetados numa parede cinzenta, fora de foco. E ele não reconhecia nada ali. O zumbido monótono quase se fundia ao silêncio. Ele tentou olhar em volta, mas nem mesmo seus olhos respondiam ao estímulo nervoso. Sentiu vontade de chorar. Mas nenhuma lágrima aflorou para trazer-lhe alívio.

Tentou se concentrar nas imagens. Tentou reconhecer algo. Mas não viu nada. No entanto, quanto mais procurava discernir alguma forma entre os borrões, mais uma outra imagem, vinda de dentro de sua memória, se tornava nítida. Uma imagem estranha, enevoada. Uma mão que afagava alguém. Longos fios castanhos e encaracolados por entre os dedos. Não via o rosto, ou o ambiente em volta, mas via os cabelos... e os cabelos traziam a ele uma sensação estranha, de pesar e tristeza, ou seria ternura? Se ao menos ele visse o rosto... mas apenas a mão. E as mechas macias de cabelo.

Repentinamente, o zumbido foi ficando mais alto e mais alto. O tom do zunido permanecia o mesmo, mas seu volume foi aumentando, causando nele um medo irracional. Sentiu-se arrepiar, e o corpo foi capaz de um espasmo. Mas o alívio de se movimentar foi prontamente substituído por horror, quando ele sentiu as agulhas novamente, dessa vez mais frias e mais grossas, atravessando seu crânio e se fixando em sua cabeça. De todos os lados. E, pela primeira vez, ele sentiu intensamente a dor que se insinuara das outras vezes. Sentia-se sangrar, enlouquecer, e só ele ouvia o grito lancinante que sua garganta não proferia.


* * *


Ele acordou pulando, caindo quase de pé no sofá. Seu corpo repentinamente estava totalmente funcional, e o fim de seu grito gerou um gemido rouco e estranho. Seu coração lutava desesperadamente para escapar de seu tórax. Ainda atordoado, olhou em volta. Reconheceu a casa de Alea. Alea! Seu gemido deveria tê-la acordado. Olhou para o lado e viu a silhueta dela no escuro. Ela se mexeu um pouco, se ajeitando, mas não acordara. Ele esperou o organismo desacelerar, e sentiu o vento frio da madrugada lhe gelar a pele encharcada de suor. Apesar de tudo, era um enorme alívio sentir o ar fresco e leve. Lentamente, foi deitando-se novamente no sofá. Perdera o sono completamente. O sonho ainda estava bastante vívido na sua memória, o que era um fato animador. Ao menos sua memória estava funcionando bem para os eventos recentes. Por mais que não ajudasse, ele ficou aliviado com a idéia de que sua memória não estava defeituosa e que ele não estava fadado a acordar sem saber de nada pelo resto de seus dias.

Pensando no assunto, ele repassou os últimos dias em sua mente. Era tudo o que tinha, mas ainda assim era muita coisa. Muita informação, muitos acontecimentos. Imaginou se sua vida anterior teria sido assim tão agitada. Pessoalmente, ele não apreciava aquilo tudo. Tinha um enorme desejo de adotar uma vida normal e cotidiana, sem surpresas. Mesmo que uma nova. Tudo o que ele queria era paz e segurança. Um pouco de predictabilidade. Não faria mal a ninguém.

Virou-se para o lado, e viu que Alea dormia virada para ele. A expressão no rosto dela parecia compenetrada. Ela era bonita assim, ele pensou. Quase tão bonita quanto quando sorria. Na verdade, agora que parara para pensar, o sorriso de Alea era realmente lindo. Ele se surpreendeu ao perceber que lembrava de cada sorriso dela, desde aquele estranho primeiro encontro. E era curioso como a nitidez dessas lembranças em particular era intensa. Era como se o sorriso dela iluminasse sua memória, fazendo-o ver melhor o ambiente, ouvir melhor os sons, como haviam sido naquela hora. Percebeu que estava desejando muito que ela sorrisse agora.

Ele desviou o olhar. Aquilo lhe passava uma sensação de errado, de ruim. Será que ele estaria se apaixonando por Alea? Isso seria idiota. Até onde ele sabia, ela poderia muito bem ser uma criminosa mal-intencionada que estava se aproveitando da falta de memória dele para manipulá-lo. Afinal, o lugar onde ela morava e as pessoas que conhecia não eram exatamente o ícone da sociabilidade. Mas por outro lado, histórias de amor entre vítima e captor não eram desconhecidas. Ele sabia que isso tinha um nome, mas não lembrava qual era. E não fez muito esforço para tanto. Vasculhar suas memórias falhas era um exercício de frustração. Preferiu manter-se no agora, ali no sofá, ao lado de Alea. A respiração suave e lenta dela fazia seu corpo se mover suavemente. A mão dela estava pousada logo ali ao pé do sofá, a alguns centímetros dele.

Ele olhou para a mão dela. Teve um reflexo de temor. As últimas vezes que ela tentara tocá-lo, ele tivera sensações muito estranhas. Sensações de perigo iminente, de repulsa. Sensações instintivas. E no entanto, naquele momento a mão dela parecia inofensiva, plácida, pousada suavemente sobre o colchonete. Parecia tão pequena... ele poderia envolvê-la na sua. Seu coração acelerou novamente, mas dessa vez de outra forma. A mera perspectiva de tocá-la fez seu corpo arrepiar-se de antecipação. Ele não resistiu. Lentamente, foi estendendo sua mão em direção à dela. Prestava atenção às reações de seu corpo, mas elas eram bastante diferentes das reações que tivera mais cedo. O corpo agora gelava, o estômago parecia estar dando cambalhotas, a espinha estava elétrica, com cargas subindo e descendo toda hora. Ele sentiu um súbito medo de que ela acordasse e o repreendese. Sua mão se retraiu levemente, pensando em voltar, mas a força motriz foi maior, e ele continuou estendendo a mão até que seu dedo tocou as costas da mão dela. Ele sentiu a textura, a temperatura, a consistência, tão intensamente que o resto do ambiente já não importava. Toda a sua atenção estava concentrada naquelas poucas terminações nervosas da ponta de seu dedo. Deixou o coração desacelerar um pouco, e logo foi tomando mais coragem, e encostou outro dedo, e outro, até que a palma de sua mão cobriu a mão de Alea, e ele fechou levemente seus dedos. Imediatamente, a mão dela se mexeu, devagar, se virando para que seus dedos também envolvessem a mão dele. Alea emitiu um som curto e baixo, se ajeitou mais um pouco, e logo se acalmou novamente. E ele ficou ali, estático, segurando a mão dela.

E assim ele continuou, desperto, até os primeiros raios de sol anunciarem a manhã.


Fim do Capítulo XIII

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