Farpas de Gelo



~ segunda-feira, fevereiro 25, 2002
 
Capítulo XIII

Havia um leve zunido ecoando ao longe.

Estava frio, depois quente, ou talvez estivesse frio e quente ao mesmo tempo. Ele não conseguia sentir direito. Seu corpo flutuava, sem peso, como se brincasse de soltar o ar e afundar numa piscina. Mas havia algo, o cheiro talvez. Ele não sabia. Algo o enauseava, causava ânsia de vomitar, mas ele não conseguia. Era como se seus músculos não o respondessem. Ele tentava se mexer, mas os sinais se perdiam no caminho entre o cérebro e os braços, pernas, pescoço. Era uma sufocante paralisia, e aquele zunido ao longe.

Ele tentou ao menos abrir os olhos, mas não conseguia saber se seus olhos estavam realmente fechados. Havia uma imagem abstrata, escura e pouco nítida na sua frente. A imagem mudava repentinamente, como uma troca de slides projetados numa parede cinzenta, fora de foco. E ele não reconhecia nada ali. O zumbido monótono quase se fundia ao silêncio. Ele tentou olhar em volta, mas nem mesmo seus olhos respondiam ao estímulo nervoso. Sentiu vontade de chorar. Mas nenhuma lágrima aflorou para trazer-lhe alívio.

Tentou se concentrar nas imagens. Tentou reconhecer algo. Mas não viu nada. No entanto, quanto mais procurava discernir alguma forma entre os borrões, mais uma outra imagem, vinda de dentro de sua memória, se tornava nítida. Uma imagem estranha, enevoada. Uma mão que afagava alguém. Longos fios castanhos e encaracolados por entre os dedos. Não via o rosto, ou o ambiente em volta, mas via os cabelos... e os cabelos traziam a ele uma sensação estranha, de pesar e tristeza, ou seria ternura? Se ao menos ele visse o rosto... mas apenas a mão. E as mechas macias de cabelo.

Repentinamente, o zumbido foi ficando mais alto e mais alto. O tom do zunido permanecia o mesmo, mas seu volume foi aumentando, causando nele um medo irracional. Sentiu-se arrepiar, e o corpo foi capaz de um espasmo. Mas o alívio de se movimentar foi prontamente substituído por horror, quando ele sentiu as agulhas novamente, dessa vez mais frias e mais grossas, atravessando seu crânio e se fixando em sua cabeça. De todos os lados. E, pela primeira vez, ele sentiu intensamente a dor que se insinuara das outras vezes. Sentia-se sangrar, enlouquecer, e só ele ouvia o grito lancinante que sua garganta não proferia.


* * *


Ele acordou pulando, caindo quase de pé no sofá. Seu corpo repentinamente estava totalmente funcional, e o fim de seu grito gerou um gemido rouco e estranho. Seu coração lutava desesperadamente para escapar de seu tórax. Ainda atordoado, olhou em volta. Reconheceu a casa de Alea. Alea! Seu gemido deveria tê-la acordado. Olhou para o lado e viu a silhueta dela no escuro. Ela se mexeu um pouco, se ajeitando, mas não acordara. Ele esperou o organismo desacelerar, e sentiu o vento frio da madrugada lhe gelar a pele encharcada de suor. Apesar de tudo, era um enorme alívio sentir o ar fresco e leve. Lentamente, foi deitando-se novamente no sofá. Perdera o sono completamente. O sonho ainda estava bastante vívido na sua memória, o que era um fato animador. Ao menos sua memória estava funcionando bem para os eventos recentes. Por mais que não ajudasse, ele ficou aliviado com a idéia de que sua memória não estava defeituosa e que ele não estava fadado a acordar sem saber de nada pelo resto de seus dias.

Pensando no assunto, ele repassou os últimos dias em sua mente. Era tudo o que tinha, mas ainda assim era muita coisa. Muita informação, muitos acontecimentos. Imaginou se sua vida anterior teria sido assim tão agitada. Pessoalmente, ele não apreciava aquilo tudo. Tinha um enorme desejo de adotar uma vida normal e cotidiana, sem surpresas. Mesmo que uma nova. Tudo o que ele queria era paz e segurança. Um pouco de predictabilidade. Não faria mal a ninguém.

Virou-se para o lado, e viu que Alea dormia virada para ele. A expressão no rosto dela parecia compenetrada. Ela era bonita assim, ele pensou. Quase tão bonita quanto quando sorria. Na verdade, agora que parara para pensar, o sorriso de Alea era realmente lindo. Ele se surpreendeu ao perceber que lembrava de cada sorriso dela, desde aquele estranho primeiro encontro. E era curioso como a nitidez dessas lembranças em particular era intensa. Era como se o sorriso dela iluminasse sua memória, fazendo-o ver melhor o ambiente, ouvir melhor os sons, como haviam sido naquela hora. Percebeu que estava desejando muito que ela sorrisse agora.

Ele desviou o olhar. Aquilo lhe passava uma sensação de errado, de ruim. Será que ele estaria se apaixonando por Alea? Isso seria idiota. Até onde ele sabia, ela poderia muito bem ser uma criminosa mal-intencionada que estava se aproveitando da falta de memória dele para manipulá-lo. Afinal, o lugar onde ela morava e as pessoas que conhecia não eram exatamente o ícone da sociabilidade. Mas por outro lado, histórias de amor entre vítima e captor não eram desconhecidas. Ele sabia que isso tinha um nome, mas não lembrava qual era. E não fez muito esforço para tanto. Vasculhar suas memórias falhas era um exercício de frustração. Preferiu manter-se no agora, ali no sofá, ao lado de Alea. A respiração suave e lenta dela fazia seu corpo se mover suavemente. A mão dela estava pousada logo ali ao pé do sofá, a alguns centímetros dele.

Ele olhou para a mão dela. Teve um reflexo de temor. As últimas vezes que ela tentara tocá-lo, ele tivera sensações muito estranhas. Sensações de perigo iminente, de repulsa. Sensações instintivas. E no entanto, naquele momento a mão dela parecia inofensiva, plácida, pousada suavemente sobre o colchonete. Parecia tão pequena... ele poderia envolvê-la na sua. Seu coração acelerou novamente, mas dessa vez de outra forma. A mera perspectiva de tocá-la fez seu corpo arrepiar-se de antecipação. Ele não resistiu. Lentamente, foi estendendo sua mão em direção à dela. Prestava atenção às reações de seu corpo, mas elas eram bastante diferentes das reações que tivera mais cedo. O corpo agora gelava, o estômago parecia estar dando cambalhotas, a espinha estava elétrica, com cargas subindo e descendo toda hora. Ele sentiu um súbito medo de que ela acordasse e o repreendese. Sua mão se retraiu levemente, pensando em voltar, mas a força motriz foi maior, e ele continuou estendendo a mão até que seu dedo tocou as costas da mão dela. Ele sentiu a textura, a temperatura, a consistência, tão intensamente que o resto do ambiente já não importava. Toda a sua atenção estava concentrada naquelas poucas terminações nervosas da ponta de seu dedo. Deixou o coração desacelerar um pouco, e logo foi tomando mais coragem, e encostou outro dedo, e outro, até que a palma de sua mão cobriu a mão de Alea, e ele fechou levemente seus dedos. Imediatamente, a mão dela se mexeu, devagar, se virando para que seus dedos também envolvessem a mão dele. Alea emitiu um som curto e baixo, se ajeitou mais um pouco, e logo se acalmou novamente. E ele ficou ali, estático, segurando a mão dela.

E assim ele continuou, desperto, até os primeiros raios de sol anunciarem a manhã.


Fim do Capítulo XIII

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