Farpas de Gelo



~ sexta-feira, julho 05, 2002
 
Capitulo XVIII


Alea subia a escada com passos felinos. Rápidos, decididos e silenciosos. Arthur fazia o que podia para acompanhá-la sem aletar a todos num raio de quilômetros de sua presença. Ele se sentia lerdo, pesado e barulhento. Podia sentir as batidas de seu coração fazendo tremer o peito e os braços. Nunca estivera tão nervoso em toda a sua vida. Ou talvez tivesse estado, afinal ele não lembrava de nada. E estava com um sincero medo de que não fosse durar o suficiente para descobrir.

Ambos chegaram ao andar superior do que agora parecia ser um ginásio. O andar era amplo e não tinha paredes, apenas algumas divisórias de madeira que formavam salas e corredores ao longo do andar. "Tapa a visão dos atiradores mas não pára as balas", pensou Arthur, outra vez sentindo-se em campo aberto e totalmente exposto. Dessa vez, porém, percebeu um outro sentimento, trazido à tona pelo primeiro. Uma certa excitação, uma tendência a organizar as idéias de uma forma tática e hierárquica. Percebeu que estava vasculhando metódicamente o local com o olhar e definindo possíveis pontos protegidos, melhor forma de aproximação... ele criara toda uma estratégia militar na cabeça. Arthur diminuiu o passo e parou de prestar atenção em Alea, tentando analisar ao máximo essa ação instintiva, como quem acha no fundo do armário uma das peças que faltam em um quebra-cabeças há dias incompleto.

Foi arrancado de seu devaneio por um grito, seguido de tiros. Antes mesmo de conseguir pensar alguma coisa, já estava com o fuzil empunhado, destravado e mirado na direção do ruído. Só então percebeu Alea, ainda terminando um passo brusco para trás, o cano da arma dela fumegando, e o corpo de um policial que havia emergido do corredor de surpresa caído diante dela, ainda gemendo, uma poça de sangue aumentando abaixo de si. Alea se recuperou rapidamente do susto, e virou-se para Arthur, gritando:

- Se esconde em algum canto! Agora ele sab... - não conseguiu terminar a frase. Imediatamente a porta de uma das divisórias, mais para o fundo do corredor, estourou com um chute violento. Logo depois metade do corpo de outro policial se inclinou para fora da porta, com uma metralhadora nas mãos, e agitando-a de um lado para o outro, ele começou a atirar. Alea pulou para o chão, e Arthur se escondeu atrás de uma pilastra de concreto cuja localização ele havia instintivamente recordado.

As balas zuniam, destroçavam madeira e ricocheteavam em todos os cantos. Enquanto se escondia, Arthur era assolado por um turbilhão de dúvidas. Por que ele reagia tão corretamente àquela situação de conflito? Por que empunhou a arma tão bem, por que não sentira nenhum choque ao ver o corpo do homem recém baleado caindo morto no chão? E a maior angústia: Será que Alessandra havia escapado dos tiros? Ele sentiu o ímpeto de olhar, precisava ter certeza que ela estava bem, mas o soldado no fim do corredor ainda atirava. No exato momento em que ouviu o clique seco da munição do guarda se esgotando, Arthur saiu de trás da pilastra, atirando como louco na direção do policial, que pulou para dentro da sala onde estava para escapar. Quando percebeu que o atirador havia se escondido, Arthur correu para onde Alea jazia. Cada passo parecia levar anos para acontecer.

Mas bastou chegar perto para que Arthur percebesse que ela estava ilesa. Nem um arranhão. Havia caído de mal jeito, e estava gemendo de dor. Mas era só isso. Arthur ajudou Alea a se levantar, sem dizer palavra, e a fez passar o braço por cima de seu ombro. Ela não conseguia colocar a perna direita no chão, e ele fez menção de carregá-la para trás da pilastra, quando o policial reapareceu na porta. Arthur gelou. O policial, ao vê-lo completamente indefeso, hesitou por um segundo. Arthur pode vê-lo sorrindo por trás do capacete.

Três tiros soaram altos como trovões. Arthur sentiu o corpo todo formigar na expectativa do impacto com as balas, e logo após uma onda de frio percorreu seu corpo de cima a baixo. Não sentira impacto algum. Só então viu o corpo do policial cair, cravejado por três balas certeiras da pistola de Alea, que aproveitara o momento de hesitação do oponente. A expressão no rosto dela era assustadora. Os olhos pareciam borbulhar incandescentes. Ela tirou o braço do ombro de Arthur e seguiu em frente sozinha, mancando.

- Alea... - Arthur chamou, querendo pedir para que ela não fosse, mas o chamado foi ignorado com tamanha veemência que ele nem completou a frase. Ajeitando a alça do fuzil sobre o ombro, ele correu até emparelhar com ela. Alea andava segurando a pistola à frente do peito, e apontando-a para todas as direções em que olhava. Entrando em uma das saletas, encontrou mais um policial, que, ao vê-la, imediatamente largou a arma e colocou as mãos sobre a cabeça.

- Não me mata! Não me mata, por favor! - implorava o policial. Pela voz e pelo pouco de rosto que o capacete deixava enxergar, Arthur pode dizer que era um garoto, de 22 anos no máximo. Provavelmente novo no serviço. Alea, rugindo, o inquiriu:

- Cadê o prisineiro? Hein? - O garoto se ajoelhou e continuou a implorar pela vida. Alea avançou para cima dele e o acertou em cheio no rosto com a coronha da pistola. O garoto cuspiu sangue, e parou de falar, limitando-se a respirar ofegante e pesadamente.

- Fala, seu merda! Cadê o cara? - Alea parecia prestes a atirar no policial, a despeito de sua rendição. O garoto, com voz quase chorosa, falou:

- Ele tá no fim do corredor. No armário de metal. A chave tá ali na mesa, só por favor não me mata!

Alea olhou para a mesa, e viu um pequeno molho de chaves. Alcançou-o com uma mão, mantendo a outra a apontar a pistola para o menino. Antes de sair da sala, ainda disse:

- Se ele estiver com um arranhão, um hematoma por menor que seja, eu volto aqui e espanco você até a morte! Entendeu? - Alea estava falando seríssimo. Até mesmo Arthur teve medo dela naquele momento. O policial apenas meneava a cabeça em sinal afirmativo, e chorava silenciosamente. Alea saiu da sala tão decididamente quanto entrou, e Arthur, indeciso entre seguí-la ou ficar ali com o garoto, virou-se para ele e falou:

- Não saia daqui em hipótese alguma, se você tem amor à vida.

O garoto pareceu assimilar essa informação tão bem quanto as anteriores. Arthur, convencido de que o jovem policial não tentaria nada de estúpido, seguiu o corredor na direção que Alea havia tomado.

Chegando ao final da passagem, Arthur viu uma fileira de armários de metal. Alea nervosamente procurava a chave que destrancava a porta do último, entre as várias chaves do molho que pegara na sala. As portas de todos os outros armários aparentemente não estavam trancadas, e ela já havia escancarado todas.

Arthur se aproximou e estendeu a mão para pegar o molho das mãos de Alea:

- Aqui, deixa eu ajudar...

Mas ela respondeu com uma cotovelada que o pegou de raspão, mas que o deixou estupefato. Ele se afastou, confuso com a reação violenta dela. A cotovelada não tinha lhe acertado nem de longe, mas ele sentia a dor de um golpe perfeito. Ela o havia agredido! Revoltado, Arthur chegou a pensar em ir embora e deixá-la ali sozinha, se era essa a gratidão que ela demonstrava por ele tê-la acompanhado num ataque suicida e idiota. Mas logo respirou fundo e repensou. Percebeu que não podia culpá-la, ela estava fora de si. Deixaria para conversar isso com ela mais tarde e...

Nesse momento, a chave virou, e com um estalido metálico, a porta se abriu de súbito, parte devido à força do puxão de Alea, parte devido ao peso do corpo que estava encostado nela por dentro. O homem caiu no chão ruidosamente entre Alea e Arthur. Ele parecia ter mais ou menos 30 anos, branco, cabelo em corte militar. Usava uma calça com vários bolsos e uma camisa regata, e Arthur notou que ele tinha um porte físico desenvolvido. Estava desacordado, mas não parecia morto. Também não parecia machucado, mas havia claros sinais de ter sido despojado de várias coisas que trazia consigo antes de ser amarrado e preso ali. Os bolsos da calça estavam quase todos rasgados e algo parecia ter sido arrancado de seu cinto.

Imediatamente, Alea debruçou-se sobre o homem e colocou dois dedos em seu pescoço, segurando o pulso com a outra mão. Ficou de olhos fechados por um longo segundo, depois deu um sonoro suspiro de alívio. Abriu novamente os olhos, olhando para o rapaz a seus pés. Arthur viu nos olhos de Alea o mesmo brilho que vira mais cedo no carro. E teve certeza.

Aquele era o tal Gilbran.


Fim do Capitulo XVIII
~ quinta-feira, julho 04, 2002
 
Capítulo XVII


Arthur perdeu a conta do sem-número de pequenos becos e vielas pelos quais Alea se meteu, sempre o puxando pelo braço. A grande maioria desses becos ele nem havia tomado conhecimento antes de Alea mudar repentinamente de direção e arrastá-lo junto. Havia cinco minutos que eles corriam incessantemente, e por várias vezes ouviram as vozes dos seguranças logo adiante, horas em que Alea sempre arrumara uma outra viela providencial para se enfiar e evitar a detecção. Arthur esperava que após tanto tempo sem serem encontrados, eles fossem diminuir o passo, mas os seguranças não davam sinal de cansaço, e muito menos Alea. Estava no meio desse pensamento, quando ela de súbito parou.

Estavam próximos ao fim de mais um beco, e alea encostou-se na parede, puxando Arthur pelo braço para encostar-se também. Ela observou logo além da esquina, e voltou-se para ele:

- Ok, a gente tem que chegar naquele prédio ali.

Arthur inclinou-se para olhar. Percebeu então que eles estavam do outro lado do lugar onde o jipe explodira. A parede logo à frente do fim da viela onde estavam era a parede lateral do prédio onde Alea queria entrar. O único problema é que haviam pelo menos cinco seguranças ali, observando os estragos causados pelo veículo, e veriam muito facilmente caso eles tentassem entrar no prédio. Arthur voltou a encostar-se na parede da viela.

- Bem, é impossível. Melhor corrermos daqui para algum lugar seguro.

Alea olhou para ele com desaprovação:

- Impossível? É assim que você pretende nos ajudar? É claro que é possível, olhe de novo.

Alea puxou a gola de Arthur para que ele olhasse novamente, dessa vez apontando para uma janela aberta na parede logo adiante, a uns 2 metros e meio do chão.

- Tá doida? Como é que a gente vai alcançar aquilo? - perguntou Arthur, controlando-se para falar o mais baixo possível. Adiante, os seguranças, de costas, não notavam sua presença por pouco. Alea respondeu:

- Você me sobe e eu te puxo, ué!

Arthur não tinha nem terminado de pensar num protesto contra a idéia maluca de Alea quando ela disparou novamente, puxando-o pelo braço. Ambos pararam logo abaixo da janela, e ela olhou para ele e acenou com a cabeça para cima, indicando a ele que a subisse. O coração de Arthur disparou. Se algum dos seguranças se virasse para trás agora, teria um alvo fácil. Arthur sentiu-se uma criança vulnerável, querendo correr para o esconderijo mais próximo. Alea fez uma careta impaciente, e repetiu o gesto. Ainda meio trêmulo, com a adrenalina a mil. Arthur juntou as mãos diante do abdomen para que Alea apoiasse o pé. Mal ela pisou, ele a impulsionou para cima com toda a força. Inesperadamente, foi forte demais, e Alea praticamente voou janela adentro, caindo com um estrondo. Arthur gelou, tendo a nítida impressão que os policiais ouviriam, e ficou estático. Mas nenhum deles se virou. Foi quando ele sentiu um tapa em sua cabeça. Olhou para cima, e viu Alea. Rindo, a louca.

- Ei, seu escroto, não precisa me jogar longe assim! Agora vem, dá a mão.

Ainda atônito, ele deu as mãos para que Alea o puxasse. Ela franziu os olhos e com um gemido longo e contínuo começou a içá-lo. Então, Arthur no meio da subida ouviu um grito "Ei, olha ali!", e soube na mesma hora que o gemido de Alea havia chamado a atenção dos tiras. Então, deixando o instinto de sobrevivência lhe dominar, deu um impulso na parede que quase jogou Alea para fora outra vez, mas o levou até o batente. Alea imediatamente puxou suas pernas para dentro, milésimos de segundo antes das balas passarem zunindo. Mal Arthur caiu no chão, ela o puxou pelo braço, forçando-o a ficar de pé, e saiu correndo em direção à porta da kitchinete onde tinham aterrisado. Alea girou a maçaneta e puxou a porta, que estava destrancada. logo à direita, uma escada descia até a porta de entrada do prédio, e à frente havia outra porta.

- Vem! - gritou Alea, sempre puxando Arthur atrás de si, disparando em direção à outra porta. No meio do caminho, Arthur viu a sombra dos seguranças chegando na porta do prédio. Ele fechou os olhos e desejou como nunca que a porta adiante estivesse destrancada também. Mas Alea já tinha aberto ela, e corria como louca na direção de outra janela. De repente, ela largou o braço dele e gritou:

- Pula!

E se atirou no ar lá fora. Arthur hesitou por um momento, mas ouvindo os passos dos guardas na escada do corredor, respirou fundo e pulou também, fechando os olhos.

Aterrisou em cima de algo. Logo notou que era alguém. O peso de seu corpo derrubou a pessoa no chão com um gemido, que para alívio parcial de Arthur, não era de mulher. Ele rolou de cima do corpo para o chão e abriu os olhos, virando-se para olhar. Tinha caído em cima de um policial! À frente do corpo estatelado do tira, Alea, de joelhos, levantava-se. Arthur entendeu que tinha acabado de salvar a vida dela, que deveria ter aterrisado bem diante do guarda armado. O sorriso radiante dela ao correr em sua direção confirmava a teoria. Arthur preparou seu braço para o tranco de ser novamente puxado, mas ao invés disso, Alea o abraçou. Ele ficou estupefato. Ela ria como uma criança elétrica, um risinho agudo e maroto. Afastou-se dele, olhou em seus olhos confusos e lascou-lhe um rápido beijo nos lábios.
- Valeu neném! - disse ela, com um sorriso do tamanho do mundo. Arthur sentiu uma onda de formigamento percorrer o corpo, partindo de sua boca, como se o beijo dela tivesse emanado uma poderosa descarga elétrica. Ele não sabia o que fazer, tinha esquecido até mesmo como andar. Mas o êxtase durou pouco, logo a cabeça de outro guarda despontou na janela da qual haviam acabado de pular, e Alea, notando, correu num impulso explosivo para dentro de uma construção grande ali do lado, puxando Arthur atrás de si. Ambos entraram e ela fechou a porta, que tinha uma forte tranca por dentro. Enquanto ela trancava, o barulho de tiros ricocheteando no metal da pesada porta lá fora podiam ser ouvidos. Logo foram substituidos por violentas pancadas. Alea deu dois passos para trás, olhando para a porta, depois caiu no chão, primeiro sobre os joelhos, depois sentada, apoiando-se em um braço, quase desfalecida. Arthur correu para socorrê-la.

- Tô bem, neném... tô bem, deixa... - disse ela, deixando o peso do corpo cair nos braços de Arthur. - Pelo menos a gente chegou onde devia.

Ela respirou profundamente, de olhos fechados, e Arthur sentiu um ímpeto de abraçá-la e carregá-la dali para algum lugar longe, longe de tiros, policiais e daquela guerra toda lá fora. Mas ela abriu os olhos e, como que com a força totalmente renovada, pulou sobre os próprios pés novamente. E disse:

- Essa porta foi feita pra manter gente do lado de fora, mas eles podem derrubar ela rápido. E eu não sei quantos ainda estão aqui dentro. Vem comigo, neném. Não acabou ainda.

Então ela pegou o embrulho de pano que carregara até ali, abriu-o no chão, e Arthur pode finalmente ver do que se tratava. Dois fuzis, duas pistolas e um punhado de pentes sobressalentes. Alea atirou um dos fuzis para Arthur, que desajeitadamente o aparou nos braços, temendo que fosse disparar a qualquer momento, e enfiou uma das pistolas no cinto dele.

- Calma, tá travada. - disse ela, e sem tirar os olhos dos dele, pegou o fuzil, tirou a trava, e devolveu - Agora não tá mais. Usa com cuidado.

E enquanto Arthur ainda olhava confuso para a arma em suas mãos, ela pegou as duas restantes, virou-se para uma escada larga que levava ao segundo andar, e disse:

- É agora, Arthur. Se vir algum deles, atire. Pra matar.


Fim do Capítulo XVII

Powered By Blogger TM