Farpas de Gelo



~ domingo, maio 19, 2002
 
Capítulo XVI


O carro jogava para um lado, depois para o outro. Abaixado com a cabeça no colo de Alea, Arthur sentia um leve enjôo. Haviam deixado para trás o guarda armado, mas ela ainda segurava a cabeça dele para baixo. Ele queria levantar, queria olhar para o que estava acontecendo, na tentativa do enjôo diminuir, mas a mera menção de levantar gerou um novo empurrão para baixo.

- Fica aí! - ela berrou. Ele abriu a boca para protestar, mas logo escutou novos tiros. Súbito, alguma coisa no painel estourou. Alea berrou um sonoro palavrão e fez uma curva tão brusca que Arthur teve a certeza de que o carro iria virar. Pôde inclusive sentir as rodas se levantarem levemente do chão, mas logo Alea jogou para o outro lado e o carro caiu novamente com estrondo. Nesse momento, a mão de Alea que segurava a cabeça de Arthur foi requisitada no volante, e ele aproveitou a deixa para sentar-se novamente.

- Deita, porra! Quer morrer?! - berrou Alea com uma fúria dracônica nos olhos, mas olhando para a frente ainda. Arthur encheu o peito e gritou de volta:

- Ah, tá perguntando isso agora?! Agora é meio tarde pra dizer que não, né? Você já praticamente matou a nós dois!

Alea pareceu conter uma explosão na garganta, e disse em um tom de voz anormalmente monotônico:

- Escuta aqui, neném. Se você fizer exatamente o que eu disser, você vive. Caso contrário, foi um prazer conhecer você. Entendeu?

Arthur queria responder, mas se calou. Ficar tirando a concentração da motorista agora não era nada construtivo. Os tiros haviam cessado novamente, mas ele ouvia o barulho de carros os perseguindo. Alea entrava e saia freneticamente de becos e ruelas para evitar uma linha de fogo entre ela e os perseguidores, mas Arthur percebeu que ela ainda seguia em uma certa direção.

- Pra onde a gente tá indo? - ele perguntou, e ela ficou calada. Ele esperou. Nenhuma resposta. Ele resolveu insistir, a voz mais nervosa:

- Pra onde a gente tá indo, Alessandra?!

A resposta veio no olhar dela, que se focou em algo e brilhou estranhamente logo depois que o veículo saiu de uma viela e dobrou em uma rua um pouco mais larga. Arthur se virou para ver. E seus olhos se arregalaram de pavor.

Diante dele, pelo menos dez carros de policiais barravam a entrada de um edifício grande, parecido com uma fábrica. Perto dos carros, um sem-número de fardados corria de um lado para outro, pegando armas e se agrupando sob o comando de alguns aparentemente mais graduados. O barulho estridente dos peneus do jipe fazendo a curva chamou a atenção de todos, e eles se viraram instantaneamente. E por uma fração de segundo, a visão do inesperado os desarmou.

Foi nessa fração de segundo que Alea puxou de baixo do banco uma pedra e prendeu o acelerador. Arthur olhou para ela, e de novo para os policiais. A cena acontecia em câmera lenta, arrastada. Cada um deles destravava sua arma e fazia pontaria na direção do carro. Olhou novamente para Alea, e a viu quase debruçada sobre o banco traseiro, de onde pegou um embrulho de pano mais ou menos do tamanho de uma maleta. Olhou para a frente novamente. As armas todas apontavam na direção deles. Arthur fechou os olhos esperando ser varado por uma saraivada de tiros, e os sons ambientes se distanciaram e diminuiram até ele estar ouvindo apenas as batidas frenéticas de seu próprio coração. E em meio a essas batidas, ele ouviu:

- Pula!

Sentiu Alea passando por cima dele, e a mão dela agarrando seu braço firmemente. Arthur flexionou as pernas de qualquer maneira, e sentiu o corpo solto no ar. Vários segundos flutuando, em silêncio. Então, ele ouviu o zunido de algumas balas passando, algumas perto, outras muito perto. E poucos segundos depois, o chão o atingiu, vindo de algum lugar, e ele rolou, rolou até atingir algo, seu corpo absolutamente dolorido. Sentiu que a cabeça ainda rodava, que queria desmaiar, mas fez um enorme esforço e abriu os olhos. E a primeira coisa que viu, de um ângulo absolutamente estranho, foi o jipe seguindo impetuosamente em frente, apesar dos tiros disparados. Logo os guardas deixavam de atirar e corriam desesperados para o lado, escapando do veículo descontrolado. Então o jipe atingiu o primeiro dos carros. E a explosão foi estrondosa e magnífica.

Arthur relaxou o corpo, sentindo-se todo escoriado, e ia aceitando de bom grado a perda de consciência, quando um pé descalço bloqueou sua visão. Lentamente, ele foi subindo o olhar, e deparou-se com Alea, semi-agachada, diante de si. Ela estava muito pouco arranhada, e seu rosto era grave:

- Vamos! A gente tem pouco tempo! - e estendeu a mão para ele.

Com um longo suspiro, Arthur deu a mão para ela, permitindo-se levantar, e imaginando que espécie de loucura idiota havia tomado conta de Alea.


Fim do Capítulo XVI
~ sábado, maio 04, 2002
 
Capítulo XV


O vento forte no rosto de Arthur o forçava a franzir o cenho e apertar os olhos. Ele se ajeitou no banco pequeno do jipe, buscando aliviar seu desconforto, mas sabia que o incômodo não vinha da posição no assento, e sim da velocidade assustadora que Alea, a seu lado, impunha ao veículo, enquanto berrava em um celular:

- ...Não me interessa! Não! - repetia ela, claramente interrompendo quem quer que estivesse do outro lado - Ah, é?! Pois foi a pior coisa que ele podia ter feito! Ele tinha que ter me contado na mesma hora! Ah, cala essa boca! Foda-se, fo-da-se o que você acha! Ele tinha que ter contado isso ontem! Saber pelo jornal foi muito escroto!

Enquanto esbravejava, ela fazia curvas bruscas por milhares de ruelas apinhadas de pequenos edifícios e casebres. Guiava apenas com uma mão, que eventualmente soltava o volante para ser enterrada com força na buzina, tirando da frente algum pedestre desavisado. A cada curva, Arthur fechava os olhos e suava frio, tendo certeza que ia cair. Mas até agora havia conseguido se manter dentro do carro por milagre. Ao seu lado, Alea gritava cada vez mais:

- Ah, chega! Chega, porra! Não vou mais discutir! Diz pra ele onde eu tô indo. Aah, sabe sim! Sabe muito bem! E se não souber, descobre! - terminou finalmente, atirando enfurecidamente o telefone no banco traseiro do jipe. Por poucos centímetros o aparelho escabou de voar para fora. Alea agora usava ambas as mãos para socar o volante:

- Merda! Merda, merda, merda!!

- Ei, você... - Arthur hesitou, notando que falava muito baixo para ela conseguir escutar. Completou em voz alta - Cê tá bem?

- Não! Não tô! Eu tô péssima! Eu tô muito mais que péssima! - ela respondeu sem olhar para ele. Continuava dirigindo com uma mão só, enquanto mordia as costas do dedo indicador da outra, o cotovelo apoiado na porta. Ele respirou fundo, tomou coragem, e perguntou:

- Ok... o que exatamente aconteceu?

- Eles já começaram! Os filhos da puta já começaram! Aquele grande merda do Seikewikz não perde tempo. Ele só anunciou os planos de expandir as fronteiras da província depois de já ter sitiado uma área grande dos guetos. Ele agiu de surpresa, pegou muita gente desprevenida. Muita gente nossa. Ontem, quando você saiu da sala, eu e meu pai passamos uma hora discutindo se deixaríamos eles para trás para evitar confronto. Mas meu pai não me disse. Não me disse! E de propósito! Ele sabia!

Arthur percebeu que ela parara de falar, mas ainda não tinha entendido. Então arriscou perguntar:

- Sabia do quê?

- Que Gilbran estava lá! - ela disse, e a voz dela tremulou levemente. Arthur sentiu seu estômago dar uma cambalhota de repente, e não entendeu por quê. Quem era Gilbran? E mais importante... por que Alea tinha ficado tão fora de si ao saber que ele estava capturado? E aliás, o que exatamente ela pretendia fazer?

Mal acabara de pensar isso, Arthur olhou para frente e viu que agora estavam em uma rua comprida e reta, e adiante no caminho, havia um veículo preto com um emblema pintado do lado de sete estrelas prateadas, e dois homens com uniformes completos, montando guarda. Um deles notou o jipe vindo em sua direção, e estendeu o braço, mostrando a palma da mão num sinal para o veículo parar. E então, Alea acelerou. E Arthur entendeu o que ela iria fazer. E desejou, com uma intensidade terrível, que estivesse errado.

Embora o visor do capacete estivesse abaixado, Arthur pode ver claramente os olhos do policial se arregalando. Ele jogou a mão para a cintura, em busca da arma, mas era tarde demais. Com um impacto estrondoso, o jipe atingiu a frente do carro de polícia, que girou, acertando em cheio o policial. O colega dele teve tempo de pular para fora do caminho do jipe, e levantou-se do chão sacando a própria arma. Alea olhou para o retrovisor e instintivamente agarrou a cabeça de Arthur, puxando-a para seu colo:

- Abaixa!

e Arthur fechou os olhos e desejou que tudo aquilo fosse um terrível pesadelo, enquanto balas zuniam a alguns centímetros dele, onde segundos antes estivera sua cabeça...


Fim do Capítulo XV

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