Farpas de Gelo



~ quarta-feira, abril 10, 2002
 
Capítulo XIV


De um pulo, Arthur abriu os olhos e ergueu a cabeça. Percebeu que havia apagado, mas não sabia quando nem por quanto tempo. Sua mão ainda estava caída sobre o colchão de Alea, mas ela não estava mais ali. Um pouco angustiado, seus olhos a procuraram até que viram a sombra dela na parca luz que entrava pela janelinha da cozinha. Estava arrumando algumas coisas sobre a mesa. O cheiro de café invadiu os sentidos dele. Café da manhã?

Ele sorriu, mas logo pensou que, se ela já tinha acordado, então provavelmente havia visto que ele segurava sua mão. Seu braço se retraiu instintivamente, e ele olhou para baixo. Fingiu que dormia por alguns segundos, enquanto ensaiava o despertar.

E então se levantou, com a cara exageradamente amassada, e fingiu procurá-la. Da cozinha, Alea notou que ele despertara e, quase cantando, falou, com um farto sorriso:

- Bom dia, neném! Quer esquentar a goela pra ver se anima?

Arthur emitiu um som abafado e indefinido em resposta, e Alea gargalhou. Sentou-se, cantarolando baixo, e começou a comer algo que parecia um bolo amanteigado. Arthur se levantou, apanhou algumas roupas novas que Alea deixara sobre uma cadeira, e foi para o banheiro. Enquanto lavava o rosto, observou-se no minúsculo espelho. Ainda não se acostumara com aquilo, sempre que se olhava no espelho tinha uma sensação esquisita de surrealidade. Ainda mais estranha porque não tinha uma imagem do rosto que ESPERAVA ver. Durante todo o tempo em que se vestia, tentou em vão lembrar de alguma feição, cor de olhos, qualquer coisa. As lembranças evocavam sensações que se dissipavam momentos antes de se tornarem imagens.

Frustrado, voltou à sala do apartamento. Alea estava virando um copo de leite e, ao avistá-lo, baixou o copo, que deixou nela um pitoresco bigode branco. Arthur não conteve uma risada, e ela riu de volta. Depois lambeu o que pôde, limpando o resto com as costas da mão. Arthur olhou então para a comida, e a visão de uma mesa posta, mesmo que com pouca coisa, fez seu estômago roncar alto. Estava morrendo de fome. Mesmo. Aproximou-se para sentar ao lado de Alea, mas viu que não havia outro banco.

- Senta aqui, eu já acabei! - disse ela se levantando, e oferecendo o banquinho de tampo de madeira e pés de ferro enferrujado onde havia se sentado. Arthur sentiu uma pequena decepção por saber que não a teria à mesa como companhia. Mas tratou de ignorar a sensação, pensando consigo mesmo que não era mais adolescente há muito tempo. Ele se sentou e comeu, enquanto Alea enrolava seu colchonete e pegava um jornal do lado de fora da porta.

Arthur saboreou cada pedaço do bolo e tomou o café já morno sem açúcar. Não lembrava da última vez que tinha comido algo saboroso assim. O bolo era realmente fenomenal, embora ele não pudesse dizer ainda do que era feito. Curioso, perguntou para Alea na sala:

- Esse bolo é muito bom! Foi você quem fez?

Não houve resposta. Ele estranhou. E, virando-se, começou a repetir a pergunta:

- Alea, foi você quem... - não terminou. Deparou-se com ela, de pé em frente à porta ainda entreaberta, olhando para o jornal, estática. Apenas seus olhos, arregalados e vítreos, percorriam as linhas escritas com uma fúria que quase queimava o papel. Não havia mais nenhum traço em seu rosto da menina que Arthur vislumbrara durante a manhã. Era uma mulher, com o peso do mundo sobre seus ombros, com a idade de mil vidas no cenho franzido. Arthur pulou do banco e correu até ela, segurando seus ombros. Baixou os olhos para ler o jornal, mas por alguma razão ergueu-os novamente e os pousou sobre os de Alea, preocupado. Os olhos dela estavam úmidos, e ela mexeu a boca tentando falar, mas a princípio nada saiu. Ela balançou a cabeça, fechou os olhos e, dessa vez, disse com voz grave:

- Vem!

E agarrando seus papéis de qualquer jeito com uma mão, e o braço de Arthur com a outra, ela atravessou a porta como um furacão, mal dando tempo dele, assustado, fechá-la atrás de si.


Fim do Capítulo XIV

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